segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Amanhã lançamento do livro “Diários Secretos de Eva Braun” com apresentação de Nuno Rogeiro.

Prólogo

Os passos incessantes sobre a minha cabeça irritavam-me. Receava a sua intrusão no meu sono, e no entanto eu esperava qualquer coisa deles. Faziam-se acompanhar de um afluxo de ruídos indiscerníveis. Irritada, fiquei à escuta dos indícios que talvez me revelassem o que eu pressentia ser um segredo.
   Quando me cruzei na escada com o velho senhor responsável pelos rumores nocturnos, estava longe de imaginar que ele me entregasse a chave do enigma. A consonância estranha do seu nome intrigava-me. Um nome como Ircher ou Hümer. O sotaque gutural chama-me a atenção. Ele não me diz nada para além de um «bom dia» cortês, e a nossa primeira troca de palavras ficou por aí. Na noite seguinte, a minha escuta atenta revela-me a cadência marcial do seu passo, ao ritmo de uma música que ele escandia com a ponta da bengala. A música de que ele marcava o ritmo era, sem sombra de dúvida, a dos Mestres Cantores. Não precisei de apurar o ouvido durante muito tempo para me aperceber de que ele conhecia de cor a ária e as palavras da ópera de Wagner. Nos dias que se seguiram, o velho senhor continuou a cantar a toda a brida, como que para se treinar, mas também como que para se convencer. A música e o canto pareciam acompanhar a sua marcha, que evocava um bater de botas.
   O que eu ouvira não fazia senão adensar o mistério. Pois o canto conquistador do velho senhor ajustava-se mal ao aspecto curvado que traía o seu desgaste físico. Fui então tomada de uma infinita compaixão. O rumor nocturno não provinha pois de um entusiasmo intempestivo. A dissonância que me impressionara revelava talvez a urgência de uma tarefa a concluir. O que quereria ele terminar com tanta pressa?
   Alguns dias depois, adivinhando a minha curiosidade, mas sobretudo a minha solicitude, ele abordou-me. Parecia feliz por confiar a sua sorte a uma vizinha compadecida:
   — Estou a tentar pôr um ponto final numa obra que me ocupa há muito tempo — disse-me ele. — Este texto representa o apogeu da minha obra de tradutor.
    O Senhor Hümer traduzia do alemão para o português. Alemão por parte do pai e português por parte da mãe, ele era perfeitamente bilingue. Não me disse mais nada acerca dessa obra, e despediu-se de mim precipitadamente.
   Algum tempo depois, a deambulação sobre a minha cabeça terminou. A porteira do imóvel anuncia-me o falecimento do meu novo amigo. Antes de morrer, ele confiara-lhe um grande envelope selado dirigido a mim. Abri-o com alguma ansiedade.
    Eis o que ele continha:

   Minha Senhora, e cara vizinha:

   Esta é a tradução que eu empreendi há já mais de quatro anos. Trata-se do diário íntimo de Eva Braun. Pus-lhe um ponto final, pois os indícios do meu fim fazem-se sentir. Confio-lha. Faça dela o uso que achar conveniente.
   Conheci a Eva em circunstâncias estranhas, que não posso revelar. Prometi guardar segredo. Para nós, alemães, uma promessa é sagrada. Os inquéritos ordenados por Hitler acerca das companhias dos que lhe eram próximos deixaram-me na sombra. Para além da gravidade dos seus escolhos, a ordem tem as suas carências e os serviços zelosos do Führer as suas falhas!
   Quis-se fazer de Eva um ser insignificante, apegado ao seu corpo e ao seu baloiço. As minhas conversas com ela no fim da sua vida ajudaram-me a ultrapassar as aparências. Eva mascarava muitas vezes a sua verdadeira natureza e a complexidade dos seus estados. A sua educação religiosa ensinou-lhe a reserva, mas igualmente a duplicidade, e sem dúvida também a submissão. No desenrolar das nossas conversas, descobri que só a sua cegueira pelo seu ídolo fizera dela essa pequena criatura inconsistente, desprovida de lucidez, ou mesmo de existência.
   Na verdade, esse passarinho desmiolado sabia. Por idolatria, fechava os olhos, aprovando as maquinações mais imundas da parte de quem ela decidira, uma vez por todas, que tudo o que ele dizia ou fazia era grandioso.
    A história de Eva encerra um mistério, e a confissão que ela nos deixa ultrapassa-a. Antes de mais, porque o enfeitiçamento que ela sofreu, sob a máscara enganosa do fenómeno amoroso, não é senão um reflexo perfeito de uma fascinação e de uma mistificação colectivas.
   Depois, porque — irá ver quando ler o seu diário — Eva pressente, apercebe-se, mas não consegue resolver as razões do enigma do qual a sua intuição lhe fornece as premissas. Faltavam-lhe as chaves, faltava-lhe o distanciamento. Como se poderia analisar um fenómeno quando se está a vivê-lo? Seria primeiro preciso que a História se enredasse e desenredasse, ascensão e queda misturadas, para que dela se desprendessem os ensinamentos.
   De um modo estranho, foi-me dado conhecer ambas as fases. Pois houve para mim um pós-Eva. Assim, dois encontros, duas sensibilidades femininas ensinaram-me muito acerca do deplorável episódio alemão.
   Eva não era judia, Sara era-o; conheci-a muito tempo após a guerra, quando me instalei em França. Só muitos anos depois vim viver para o Rio de Janeiro.
   Eva, com a sua intuição tão precisa, adivinhava, sem poder ainda resolver. A minha aventura amorosa com Sara, e infelizmente a minha ruptura, forneceram-me as chaves. Como se me fosse dado a compreender mais tarde as razões subterrâneas do vírus germânico.
   A Senhora compreende por que motivo considero a tradução do Diário de Eva a obra essencial da minha vida. Confio-lha. Junto-lhe a carta de Sara. Ela é a conclusão que se impõe a este Diário. Sabe agora quanto ela é importante para mim.
   Cuide deste diário e desta carta, trate da sua publicação. A tarefa está agora nas suas mãos.
   Acrescento uma coisa, por uma questão de honestidade para consigo: coloquei por vezes na boca de Eva coisas que ela não verbalizou. Fi-lo porque ela podê-las-ia ter verbalizado, pois não poderia ter deixado de pensar nelas. Assim, este texto é por momentos uma ficção, dado que lhe acrescentei pensamentos potenciais de Eva... Sabe, à maneira de Valéry1 que, na sua Introdução ao Método de Leonardo da Vinci, considerava o «possível» de Leonardo como mais verosímil do que o Leonardo da História.




Heinrich Hümer
Junto:
— Diário de Eva Braun
— Carta de Sara


1. Trata-se de Paul Valéry (1871-1945), poeta, filósofo e escritor simbolista francês.

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